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O FILME DE BRUNA SURFISTINHA

A longa lista de prostitutas de cinema, que tem em Louise Brooks, a icônica Lulu de "A Caixa de Pandora" (Pabst, 1928), e em Jody Foster, a putinha-mirim Easy de Taxi Driver (Scorcese, 1976), seus marcos mais emblemáticos e sublimes, na opinião do ex-cinéfilo que vos fala, acaba de ganhar mais um nome de peso, com a chegada, prevista para fins de fevereiro, do filme "Bruna Surfistinha", primeiro longa do diretor de publicidade paulista Marcus Baldini. Como até as pulgas do extinto cine Ipiranga sabem, coube a Deborah Secco, a piriguete oficial das novelas da Globo e das páginas da Playboy, emprestar sua gostosidade inata e sua cancha de atriz à garota de programa inspirada na autobiografia de Raquel Pacheco, a Bruna Surfistinha.

Consegui ver nada além de uns poucos trechos com cenas inteiras do filme, na semana que passou, lá na produtora do diretor, um sobradinho simpático da Vila Madalena, com uma loja de roupas instalada no térreo, onde deve ter sido a garagem. Baldini em pessoa ficou pescando as cenas em um notebook, a partir de um DVD caseiro --aparentemente, a primeira cópia pirata do filme de que se tem notícia --, cioso em não abrir os segredos de sua obra, cevados há cinco anos, desde que o texto da Surfistinha caiu em suas mãos sob a forma de arquivo de computador ainda não publicado. "Morro de vontade de sair mostrando a todo mundo a minha cinderela trash", tenta se desculpar Baldini. "Quero ouvir opiniões, conversar sobre o filme. Mas ele nem está 100% pronto ainda."

Patricinha de programa

Acho que não deve haver nem meio leitor de Serafina que não conheça a história da Raquel Pacheco, a menina de classe média alta que virou garota de programa em São Paulo. Adotada por um casal que já tinha duas filhas biológicas, a menina Raquel desandou em aluna gazeteira e mal-afamada (malhos a vonts com a meninada e consumo de maconha) de um colégio de elite paulistano, o Bandeirantes, do qual acabou sendo convidada a se retirar. Eis que num inevitável belo dia, cansada das duras e surras que levava do pai adotivo por conta de seus aprontos --chegou a roubar dinheiro e até joias dentro de casa--, botou umas mudas de roupa dentro da mochila, pegou seu R.G. ("Eu não queria ser enterrada como indigente, caso morresse na rua," ela me disse numa entrevista) e, no melhor estilo she's leaving home, bye bye, abriu a porta da frente e deu no pé para nunca mais voltar.

Uma coisa ela acabou esquecendo, no ímpeto da partida: um diário, no qual contava suas primeiras experiências como prostituta, ainda "de menor", aos 17 anos. O pai, dias depois do seu sumiço, achou o diário e toda a família ficou sabendo que Raquel não iria reviver nenhum tipo de "hippismo" sessentista em alguma comunidade de cabeludões pirados, praticando meditação e amor livre adoidado, como a menina dos versos clássicos da canção dos Beatles. O que ela ia fazer estava claro: em vez de amor livre, amor pago, em um privê (o velho e bom castelo, como se dizia há uma pá de décadas) da alameda Franca.

Tempos depois, já devidamente enfronhada na vida de "profissa," Raquel decidiu criar um blog onde narrava em salerosos detalhes seu cotidiano na horizontal --e em outras posições, sobretudo de quatro, como podemos ler em seu livro e ver no filme, segundo vislumbrei de relance enquanto o Marcus Baldini zapeava seu DVD no computador. O blog amealhou tantos fãs que valeu à "cyberhetera" convites para programas televisivos, além dos sexuais de praxe. Raquel, encarnando Bruna Surfistinha, bombou, por exemplo, no programa Silvio Santos, em 2008, sob os holofotes do quadro "Nada Além da Verdade", no qual escancarou sua vida. Logo seus clientes e seu cachê triplicaram. "Tive que contratar uma amiga, ex-colega do privê, para atender ao telefone e agendar os horários. Sozinha eu não estava mais dando conta. Ganhei um bom dinheiro," ela conta. A amiga secretária, que ficava com 10% do movimento, também não teve do que reclamar.

Best-seller

No fim de 2005, veio o golpe de mestra, com o livro "O Doce Veneno do Escorpião," que o professor universitário, blogueiro, escritor e roteirista Jorge Tarquini ajambrou a partir de depoimentos e textos da midiática Surfistinha. O livro superou os 300 mil exemplares vendidos, segundo sua editora, a Panda Books, e abriu caminho para outros caça-níqueis, como "O que Aprendi com Bruna Surfistinha" e "Na Cama com Bruna Surfistinha". E vem mais por aí. Raquel, de algum jeito, conseguiu recuperar aquele fatídico diário, que manteve depois atualizado enquanto militou na viração, e promete transformá-lo em livro a sair ainda neste ano. Ali deverão figurar as gírias mais pesadas de seu já antigo métier, que ela pessoalmente não usa --nem em seu primeiro livro ela usou, na verdade--, mas que registrou no diário e vai manter no novo livro "pra tudo ficar mais real," garante a ambiciosa autora.

Apego à realidade é uma expressão ambígua, quando se trata de definir o longa estrelado por Deborah Secco. Atriz e diretor foram unânimes em asseverar que o filme tem mais compromisso com a ficção, focada no drama emocional do dia a dia das prostitutas, do que em mimetizar com fidelidade as peripécias narradas pela Surfistinha em seu best-seller inaugural. "Fiz questão de não ter contato com a Raquel antes das filmagens," destaca Deborah, "porque, senão, ela ia me dar o personagem pronto. E o bacana da profissão de atriz é ter liberdade de construção do personagem. O que se vê ali é a minha Bruna, a minha Raquel."

Nessa jornada, em que contou com a ajuda do conhecido preparador de atores Sérgio Penna ("Carandiru", "Bicho de Sete Cabeças"), a atriz foi à antiga Cracolândia, nas imediações da estação da Luz, no centro de São Paulo, para conversar com algumas meninas drogadas que se prostituem. "Me chocou aquele olhar perdido, meio sem vida delas", relata Deborah. "A prostituta de rua leva uma vida muito arriscada. Sempre pergunto: qual homem toparia entrar num carro com dois ou três desconhecidos para uma orgia sabe-se lá onde?" Um das garotas, que a reconheceu de seus trabalhos em novelas, levou-a para conhecer o quarto esquálido e mal-cheiroso onde fazia os programas. A experiência, parece, foi incorporada no segmento do filme em que a Surfistinha se afunda em pó e álcool.

Apesar das liberdades ficcionais que o filme tomou em relação aos fatos narrados por Raquel Pacheco em "O Doce Veneno do Escorpião," Baldini conta que a própria autora, ao ver um dos primeiros "cortes" (montagens) do filme, achou tudo "muito real e verdadeiro, mesmo as coisas não tendo acontecido exatamente daquela forma," diz ele.
As cenas que pude ver no notebook do diretor --a entrevista com a cafetina (a sempre excelente Drica Moraes) no primeiro privê em que a Surfistinha trabalhou, e um hilário barraco que suas colegas armam num cabeleireiro-- me deram água na boca, juro. Deu pra sentir que Deborah Secco está na ponta do salto-agulha como atriz e compôs um personagem vigoroso e repleto de nuances, capaz de dar conta das inflexões radicais que Raquel/Bruna vai vivendo ao longo da história.

De olhos bem abertos

O diretor se derrete em elogios à sua atriz: "Ela consegue trabalhar sutilezas de interpretação que fazem toda a diferença no resultado final. Com sua enorme experiência, ela sabe exatamente onde está o eixo da câmera, o eixo do olhar dos atores com quem contracena, a luz, tudo, tudo. Deborah controla, corrige, domina o set."

O próprio livro da Raquel Pacheco segura bem a onda, tem "punch" narrativo (mérito do Jorge Tarquini, ao que parece) e é bem divertido, apesar das previsíveis breguices e do sestro ridículo de designar a genitália humana como p..., c..., bu... --às vezes, paradoxalmente, no mesmo parágrafo em que o leitor é brindado com uma sonora "pica" ou uma farta dose de "porra" (o líquido seminal, não a interjeição). Li suas 168 páginas de enfiada (êpa!) durante uma longa viagem aérea noturna, de Aracaju a São Paulo.

Foi gozado. Eu ali, ao lado de honrados e adormecidos representantes da classe C alçada aos ares pelas tarifas promocionais e pelos ventos redistributivos da economia petista, esbaldando-me com os copiosos relatos de felatios em série, DP's heroicas ("dê-pê" é dupla penetração, no léxico de alcova), "ménages à trois" e até à "huit", sodomias intempestivas, "chuvas" amarelas e negras (isso não vou explicar aqui, sorry), noitadas passadas em "swing-clubs" num frenético troca-troca de casais, com direito a intensos lesbianismos, além de outras modalidades clássicas do, ponhamos, amor físico.

Parafraseando o eternamente parafraseável Nelson Rodrigues, se cada um soubesse o que se passa dentro da cabeça do outro --ou pelas páginas que o outro está lendo na poltrona ao lado, dentro de um Airbus--, ninguém se cumprimentava. Agora é esperar pelo filme, com pinta de blockbuster nacional de boa qualidade cinematográfica, tendência que parece se firmar no Brasil. Um dia, quem sabe, acabará passando naquele mesmo avião, para aquele mesmo público. Isto é, se o avião estiver a serviço de alguma Air Gandaia da vida. Fonte

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